RÁPIDAS REFLEXÕES SOBRE HAIKAI
ROGEL SAMUEL
Se
mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
(Luiz Bacellar: Satori)
Um dia, durante um Kalachakra, alguém perguntou ao
Dalai Lama:
- Sua Santidade, o que é a Iluminação?
Ele explodiu uma grande gargalhada e disse:
- Mas eu não sei...
Assim é a noção de Haikai que aqui vamos investigar
teoricamente outra vez, em fragmentos de reflexão. Ela já nos foi pedida certa
vez como prefácio ao livro “Satori”, de
Luiz Bacellar, já falecido, publicado em Manaus pela Editora Valer (2000), um
livro de haikais. É em homenagem à memória do grande poeta amigo que vamos
retomar aqui.
A arte faz saltar a verdade, já disse Heidegger.
A lua se vê no chão, a gloriosa lua. A luz pura da
lua se vê naquele espelho, “um espelho de boas qualidades”, que jaz no chão, a
sabedoria do espelho puro da água.
Do céu à terra, a glória da lua se vê na lama.
Mas a lama não polui a lua, nem a lua purifica a
água.
Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de
mente onde se encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem entre
si na sabedoria que é como espelho.
Tão simples e tão claras, as coisas aparecem na
água da lama como puras de um céu sem nuvens.
Se
mira na poça
de lama no pátio
a lua vaidosa.
A lua não está na vaidade da água, nem a água está
coberta do glorioso céu. A água podia estar correndo lentamente, de acordo com
outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”.
Porque se pode dizer que o Haicai é a súbita visão
de espelho da mente do poeta quando nasce o olho da sabedoria.
Escreveu Santideva:
“ Yogacarin: Se a própria mente é uma ilusão, então
o que é isto que é percebido?
“Madhyamika: A mente não percebe a mente. Da mesma
maneira que uma espada não pode cortar-se a si mesma, assim é a mente.”
Se a lua se acredita no céu, está na lama.
Ou, como escreveu Wittgenstein: “o olho, que tudo
vê, não se vê”. Pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”.
Aquela verdade salta aos olhos:
“El arte hace surgir la verdad. El arte salta hacia
adelante y hace surgir la verdad de lo ente en la obra como cuidado fundador.
La palabra origen [Ur-sprung] significa hacer surgir algo por medio de un
salto, llevar al ser a partir de la procedencia de la esencia por medio de un
salto fundador” (Heidegger. El origen de la obra de arte. Trad. de Helena
Cortés y Arturo Leyte. Caminos de
bosque, Madrid, Alianza, 1996).
Por isso, a iluminação tem sido associada ao ver,
ao Olho.
No Dhammacakkappauattanasutta se declara:
"Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do
Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras
doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a
sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre
Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada".
Assim a iluminação de Buddha se fez em três etapas.
Na primeira parte da noite ele tomou conhecimento
da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da
noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de
consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a
lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda
Nobres Verdades.
Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no
conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens
interdependentes explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do
Universo.
No Dhammapada, v. 153-154, se declara solenemente:
“Na última
vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito
nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua
cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
E iluminação pressupõe sempre luz.
Haikai seria a experiência feliz da surpresa do
real da realidade que salta aos olhos, a percepção do instante significante da súbita
e fragmentária cessação do processo de vir-a-ser, uma espécie de
pseudo-iluminação em que o poeta vê naquele momento sem pensamento.
A paz, na tranqüilidade do céu sem nuvens, da água
sossegada, mesmo em movimento. Quando o pensamento cessa, o mundo desperta,
lúcido.
Se mira na poça
de lama no
pátio
a lua
vaidosa.
A lama não enlameia a lua, nem a lua se banha ali. Mas
há inteligência viva e suprema da Atenção (Sattipatana Suttra), que é a Quarta
Nobre Verdade.
A visão repousa, assim, na existência da água na
poça de lama em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou na poça de lama
do pátio onde a lua se vê radiante.
Se saber é sabor, a questão fica sem resposta.
Porque poucos a experimentaram.
É falar do que não se sabe.
No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe
não fala. Só é possível a transmissão da lucidez através da poesia.
Sendo uma experiência, o haikai faz a apreensão da
poça da água na lama do pátio num céu sem nuvens, onde a lua reina, vaidosa
entre as estrelas, na visão do silêncio que tudo penetra.
Coisa súbita, abrupta.
Sem objetivo, nem proveito.
Quando o Buddha vinha de sua Iluminação suprema Ele
encontrou um homem que, assustado ao vê-Lo com tanta luz, perguntou quem era e
quem tinha sido seu mestre.
O Buddha, que não teve mestres, respondeu:
“Eu sou Aquele que compreendeu o que devia ser
compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Por isso Eu sou o Buddha,
o Desperto”.
O haikai é despertar, aponta para a dignidade da
realidade e toma cada atividade como um fim em si mesmo.
Na visão impura, há sofrimento e libertação do
sofrimento, há céu e inferno.
Na visão impura, a lua está na imundície da lama do
chão.
Na visão pura, não: não há puro ou impuro, nem
sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor, há
sofrimento, mas não há sofredor.
Na visão pura não há certo ou errado.
Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro,
nem o de que se libertar.
Não há dualidade.
Como se diz no Sutra do Coração:
“ Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a
formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são
vazios. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não
existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso,
Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem
formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua,
nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem
tato, não existem dharmas”.
Satori é libertação?
E libertação de quê?
Talvez do próprio questionamento sobre o que satori
seja.
Libertação do questionador, do sujeito que põe a
questão, da dúvida e da certeza, o espanto da aparição misteriosa que salta ali
como o surgir do límpido desconhecido.
Um dia alguém perguntou a Sua Santidade Sakya
Trizin:
- Então, o que são as aparências?
- Um longo sonho, respondeu ele.
Quando o pensamento cessa a lua aparece.
Só a vemos quando a mente fica no estado de
desapego, de silêncio, que é a realização profunda do Dzogchen.
Diz Santidade o Dalai Lama:
“A prática cotidiana do dzogchen consiste em
cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante
todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde
jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação
nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente”.
Dzogchen é a grande perfeição.
“A Grande Perfeição: o nono e o último veículo.
Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenômenos e da presença natural
das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para
sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial”, salientou
Pema Wangyal Rinpochê.
O Satori vê dentro da verdadeira natureza, ou seja,
da correta compreensão.
É considerado o primeiro passo para a budeidade.
É uma súbita iluminação, uma súbita intuição da
verdadeira natureza, inexplicável e indescritível, e ininteligível.
Em “Viver através do Zen”, de Suzuki, se lê:
“O que significa "viver através do Zen"?
Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar
disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles
pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e
termina por nos ferir gravemente”.
“Visto de outro modo, "viver através do
Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de
nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?”
Fernando Pessoa, no seu famoso «O guardador de
rebanhos», abre sua técnica de meditação,
na melhor tradição dos mestres Zen.
Ele diz: sou um pastor de pensamentos.
"Sou
um guardador de rebanhos
O
rebanho é os meus pensamentos
E
os meus pensamentos são todos sensações.
Penso
com os olhos e com os ouvidos
E
com as mãos e os pés
E
com o nariz e a boca.
Pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la
E
comer um fruto é saber-lhe o sentido.
«Por
isso quando num dia de calor
Me
sinto triste de gozá-lo tanto.
E
me deito ao comprido na erva,
E
fecho os olhos quentes,
Sinto
todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei
a verdade e sou feliz."
É quando seu corpo está deitado na realidade que
ele reúne os pensamentos como um pastor suas ovelhas, para que não se percam
nem se extraviem, para que não divaguem, nem delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si.
É o que o Zen diz: "Viver dentro de
casa". Dentro de casa é dentro de si.
Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) cantava assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as
asas de uma libélula morta; As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo
de salgueiro; as fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis
segurando as cestas repletas de folhas de amora; os garotos da vila são vistos
com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»
Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido,
terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do
Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais,
perdemos algo que nos permitia entender o significado", diz Suzuki.
Que perdemos?
Perdemos a beleza, a claridade.
Não vemos a beleza dos pássaros no céu, das flores
na terra, da luz sobre a montanha, das sombras estreladas da noite, da lua na
poça da água.
Porque a vida em si é bela, é algo misterioso.
Escapa à compreensão intelectual.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez
do mestre e manifestou o desejo de ser iluminado no Zen.
O mestre disse: "Venha novamente quando não
houver ninguém por perto".
No dia seguinte, o monge observou que não havia
ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de
mim".
O monge chegou mais perto dele.
Disse então o mestre: "O Zen é algo que não
pode ser transmitido por palavras".
Como para o lutador de espadas. A alegria, a
felicidade está no momento presente, no fragmento presente.
Uma realidade só se dá única.
Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e
estar consciente de que estou pensando.
Como se diz no Zen: "Seguro uma espada em
minhas mãos e fico com as mãos vazias".
Ou como o monge que chegou ao seu mestre e
perguntou:
- Como posso atingir a Libertação?
- Quem te prende? - respondeu o mestre.